A minha psicanálise no cerrado

Texto escrito por Rafaela Oliveira

 É notório como somos afetados pelo espaço e pelo tempo em que vivemos. Ao olharmos para Sigmund Freud (1856-1939), pai da psicanálise, veremos que sua obra sofreu grande influências das questões de seu tempo. Vivendo em Viena em um momento em que “O ódio aos judeus já se tornara um ingrediente da política vienense.” (Gay, 2012, p.34), o antissemitismo austríaco não passou incólume por Freud, um homem ateu, porém tendo nascido em família judaica se identificava como judeu (Gay, 2012).

 

Recordo também Jacques-Lacan (1901-1981) psicanalista francês que movimentou a psicanálise realçando os contornos da experiência freudiana e ampliando seus conceitos e sua prática. Ele próprio, como gostamos muito de citar, disse em seu texto “Função e campo da fala e da Linguagem” (1953/1998) que o psicanalista que não alcança o horizonte de sua época deveria renunciar a experiência analítica. Mas não somente o período histórico circunscreve a obra de um célebre autor e pensador, também o espaço, as cidades, desde sua arquitetura e paisagem à sua política. 

Se aqui faço alusão a esses dois pensadores é porque a leitura de suas obras é tanto meu trabalho quanto minha rotina. A prática da psicanálise atravessa toda a minha vida. Mas poderia citar milhares de autores e artistas ou ainda pessoas comuns como eu. Creio poder afirmar que todos, em algum momento, somos impressionados com as imagens das nossas cidades e de sua gente, e que algo da geografia que nos ronda se assenta na nossa subjetividade.

Trago alguns exemplos literários antes de trazer um pouco de minha própria experiência. No livro “A máquina de fazer espanhóis” (2016) de Valter Hugo Mãe, o personagem principal, o sr. Silva, após o falecimento de sua esposa muda-se para um abrigo de idosos. Logo a arquitetura do prédio passa a abrigar e espelhar alguns de seus medos quanto ao presente e ao futuro de sua vida. No primeiro andar estão os idosos que não precisam de tantos cuidados, que são ativos e que ainda estão atentos a vida que passa lá fora. Para eles às janelas dão direto para um jardim, onde as crianças brincam, lembrando da vida agitada. A ida para o segundo andar era rodeada pelo fantasma da morte. Aqueles que precisavam de cuidados intensivos e constantes e que estavam em estado vegetativo iam para o segundo andar, as janelas dando direto para o cemitério. Algumas das tramas do livro se encenam com o próprio abrigo sendo uma personagem. Também as questões políticas tanto de Portugal, terra onde se passa a história, quanto de outros países, produzem marcas indeléveis na subjetividade das personagens, demonstrando que a polis, o Estado, não se limitam a uma organização simbólica. Elas  podem ter efeitos de Real na vida de seu povo. Provoca traumas, acontecimentos, encontros e desencontros.

Os espaços que ocupamos ou não ocupamos não estão muito distantes das questões de nossas existências. Neste sentido, trago ainda um trecho do livro “A estrangeira” de Claudia Durastanti, traduzido para o Brasil por Francesa Cricelli e publicado pela Editora Todavia. “Os sensores, porém, não me explicam que nome dar à migração à qual pertenço. Morreremos, e talvez em nosso túmulo escrevam o nome de quem amamos, a profissão que tivemos, a frase de um livro que lemos muitas vezes. O que não está escrito em nosso túmulo é a distância de casa.” (p.154). Neste livro, de caráter intimista, a autora conta sobre a tumultuada vida de seus pais e os efeitos que as errâncias deles tiveram sobre ela. Levada a passar por diversos lugares, sempre se sentiu uma estrangeira. 

A partir deste recorte, lembro-me ainda da minha própria infância e dos espaços em que circulei. Cresci no interior de Goiás e lembro vividamente do sentimento de encantamento e mistério que me acompanhava quando criança todas as vezes em que adentrava a casa dos amigos dos meus pais, tios, ou de desconhecidos. Não sei se por ser pequena ou por adentrar um local diferente do meu habitual que aquelas casas deixavam fortes impressões em mim, mas sempre me chegava um ar de mistério vindo não sei de onde. Um mistura da arquitetura, dos cheiros e da minha curiosidade a respeito das pessoas que ali habitavam. Uma intuição de criança já me fazia ligar a arquitetura, a geografia e o cheiro dos lugares com as impressões que tinha das pessoas que ali habitavam.

As ruas em que brinquei, em que andei de bicicleta, os armários da biblioteca da cidade e da escola, as pessoas sentadas na porta das casas no final do dia chupando mexerica, os vizinhos que iam e vinham e eu mesma que mudei algumas vezes. Essas são algumas cenas que me veem a cabeça, muitas outras não sei dizer se são frutos da realidade ou dos sonhos que costumava ter. A cidade e suas ruas sempre foram personagens dos meus sonhos.

Essas imagens infantis, mas não somente, se emaranham com nossos pensamentos e sentimentos nos momentos em que as vivemos e compõem as cenas que construímos de nossas infâncias. Nossas fantasias. Nossos dramas tragicômicos foram encenados entre essas paredes ou correndo nessas ruas. 

O cerrado moldou gerações, alimentou imaginários, impôs limites, narrativas e estilos de vida e por isso margeia nossa linguagem e nossa forma de ver o mundo.

Hoje vivo em Goiânia e nutro amor intenso por essa cidade e por seu entorno. Sair da cidade e ir para os interiores, para as cachoeiras, para os povoados onde nada parece acontecer, tudo isso se passa sob uma paisagem de plantas rasteiras, árvores belamente retorcidas, ipês secos ou floridos e ainda planaltos de tirar-nos o fôlego.

Foi em Goiânia que conheci a psicanálise. Aqui conheci psicanalistas apaixonados, dedicados, que como as árvores desse cerrado, mesmo que retorcidos à sua maneira, possuem as raízes bem fixadas no solo fértil da Psicanálise tal qual escrita por Freud, Lacan e – por que não? – por todos nós analisantes. Deitados nos divãs de nossos analistas ou sentados em suas poltronas nos permitimos cultivar uma relação intima com nossas palavras, com nossos afetos, com aquilo que não sabemos nem como, nem de onde vem, mas que nos toma.

Eu busco criar com este projeto um espaço. É a criação de mais uma forma de sustentar essa paixão pela psicanálise que cresce nesse cerrado, mas que não se encerra somente no eixo psicanalítico. Pretendo falar sobre tudo que me interessa: psicanálise, arte, literatura, cotidiano…Anseio trazer palavras e experiências minhas e de outras pessoas. É um espaço para o cultivo das sutilezas que perpassam a vida e as coisas que me cercam. É uma forma de me colocar para escrever movida pelo meu desejo de ouvir pessoas, personagens e acasos. Uma maneira de costurar meus diversos interesses com a linha da minha singularidade.

Que todes possam se sentir acolhides!

Referências
Durastanti, C. (2020). A estrangeira. Trad. Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Todavia;
Gay, P. (2012). Freud: uma vida para o nosso tempo. Trad.: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras.
Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Lacan, J. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Mãe, V. H. (2016). A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Editora Biblioteca Azul.