“Um esforço de poesia”

Texto escrito por Rafaela Oliveira

  Hâtez-vous lentement, ne perdez pas courage / cent fois sur le métier remettez votre ouvrage “

“Apresse-se lentamente, não perca a coragem / cem vezes no tear recoloque seu trabalho” 

Boileau, N.

 

Durante muito tempo sustentei a crença de que poesia era fruto de inspiração. De que poucos eram os agraciados pelo “dom das palavras”, que sabiam como usá-las da maneira “correta” para fazerem delas pequenos ou longos versos com o  potencial de um tiro de canhão no corpo ou de um sopro na alma. 

Algo em mim insistia que a escrita era coisa que desce como um raio, que inspira e faz da mão a máquina perfeita para uma alma cheia. E pode ser. Realmente existem escritores assim, que terminaram obras inspiradoras em uma noite ou uma semana. Mas também há autores brilhantes que levaram dez anos elaborando seus poemas, costurando, maturando e depurando suas histórias, como descobri ser o caso da Mar Becker em a “Mulher Submersa” (2020) em uma entrevista que deu para o Podcast literário Rabiscos.

Também Ocean Vuong, autor que me encantou e encanta de formas que nem sei dizer, ao responder sobre quantas vezes revisava um poema, respondeu que em média trinta vezes, sendo no mínimo oito, mas que em alguns poemas chegava a revisá-los cem vezes. Pode-se citar também Alejandra Pizarnik, que meticulosamente revisava e corrigia seus poemas.

Esses relatos se combinaram com meu próprio processo de escrita no mestrado. Eu que ainda sustento uma inibição da escrita, e que por vezes caio numa frustração por não conseguir num cuspe só escrever todo meu texto. Aprendi com minha orientadora que uma escrita é, quase sempre, um processo de revisão. Principalmente no mestrado. Uma revisão constante do texto, das ideias, ciente de que algo sempre vai faltar. E pelo menos para mim, isso não é algo naturalmente fácil, porque é preciso que se encare várias vezes um produto ainda bruto de si mesmo, exige leitura, paciência e tempo. Também percebi que a invenção e o estilo estão mais numa dimensão temporal que envolve repetição e revisão do que num tempo do instante. 
 
A invenção se dá num nível do estilo, pois de novo somente nos resta os arranjos, uma vez que sempre costuramos com as linhas, pensamentos, palavras e letras que recebemos do Outro, da cultura, dos que nos antecederam.  Essas experiências acrescidas de alguns efeitos de minha própria análise fizeram-me perceber o quão infantis eram e por vezes ainda são as minhas (talvez nossas) pretensões imaginárias e idealizantes de ser onipotente no campo das palavras. Se há algo que a experiência da psicanálise pode atestar é o quanto somos na verdade enredados, marcados e habitados por elas.

Faço aqui minhas as palavras de uma cartelizante da EBP (Escola Brasileira de Psicanálise) que ao apresentar seu trabalho no último Encontro Brasileiro do Campo freudiano [1], disse que por meio do trabalho em cartel conseguiu fazer um deslocamento do “ter que falar tudo” para apenas “falar algo”. Esse deslizamento subjetivo tem algo de muito belo, pois condensa toda uma mudança de posição subjetiva. Aqui faço justamente um esforço de dizer meus “algos”, pois tenho muitos. Um esforço de imprimir algo de singular. Pois nos dizeres de meu analista o estilo é algo que se tem já em si, mas que paradoxalmente, há de ser construído, como quase tudo em análise. O próprio inconsciente e a fantasia, mesmo que estejam sempre aí, irrompendo e condicionando nossos atos e repetições, são construídos em nossa análise. 

“Repetir repetir – até ficar diferente.

Repetir é um dom do estilo.”

Barros, M.

Ainda neste sentido o texto de Mônica Torres disponível no site do X Enapol [2]  aborda isso ao ressaltar que em algum momento na trajetória analítica há de se fazer uma travessia, passando por um desencanto pela “lógica do desejo” para um “esforço de poesia”. Aqui, a poesia exige um certo esforço, mas não um esforço sintomático e superegóico, mas sim esforço que advém como próprio efeito de análise, o que em Lacan localizo com o que ele fala de um “forçamento”. Vemos no final de seu ensino, em textos como “A terceira”, Lacan fazer uso deste termo “Forçamento”. Há algo no nível do gozo que nos exige este tipo de forçamento. 

Como escrever a diferença deste forçamento com algo de um imperativo superegóico? É uma questão que fica para ser construída. Hoje deixo aqui apenas essas elaborações.  Mas o principal deste texto é que há de se fazer um esforço para se fazer poesia. Pois a perfeição fruto da inspiração espontânea é uma fantasia infantil e narcísica.  Há de se introduzir o tempo da maturação e do trabalho. A imagem que encabeça este post é um lembrete disto. 

[1]  https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/
[2] http://x-enapol.org/