Olá, trago para vocês uma tradução livre do texto “Acontecimento de corpo e final de análise” de Anne Lysy. Trata-se de um texto orientador para os trabalhos do Congresso da NLS (New Lacanian School of psychoanalysis) a ser realizado no formato online em maio de 2021. O tema desse congresso é “Efeitos corporais da língua”. Mais informações estão disponíveis em https://www.nlscongress2021.com/

Acontecimento de Corpo e Final de Análise

Texto:

Anne Lysy 

Eu abordei o tema “Corpo e Ressonâncias” [1] com uma questão que tem estado em minha mente por algum tempo: o que é um “acontecimento de corpo” e não existe algum motivo para distingui-lo do que é comumente chamado um “fenômeno de corpo”? Ou melhor: o que costumava-se chamar, porque parece-me que hoje o uso de “acontecimento de corpo” tem-se tornado generalizado e tende a se confundir com “fenômeno de corpo”. Essa discussão pode parecer um capricho teórico, entretanto, no horizonte, diz respeito ao que é a operação analítica, seus fins e seus meios, e à interpretação;

 

Proponho então inicialmente restituir a noção de “acontecimento de corpo” e posteriormente irei apresentar o que alguns testemunhos de final de análise tem me ensinado a respeito, ou como eles tem me desafiado. Esses testemunhos nos dão uma visão da prática analítica atual e ao que uma análise pode conduzir.

 

Acontecimento de corpo / fenômeno de corpo

 

A expressão “fenômeno de corpo” tem florescido em nossas clínicas de psicoses e tem-se estendido para uma variedade de fenômenos, grosseiramente referindo-se a tudo o que se passa no corpo – sintomas de conversão histérica, fenômenos psicóticos, fenômenos psicossomáticos, dores estranhas e toda sorte de bizarrices. Qual status possuem? Por exemplo, o sujeito que desenvolve vertigem quando lhe contam sobre a morte do irmão; aquele que é tomado por tremores quando fala de sua história. É de fato algo que se passa no corpo, mas se poderíamos realmente chamá-los de “acontecimentos de corpo”?

 

Um primeiro caminho. Durante uma conversação,[2] J.-A. Miller distingue entre “fenômeno de eclipse e fenômeno permanente”: “Fenômenos de corpo são chamados ‘sinthomas’ quando se instalam permanentemente e ordenam a vida do sujeito.”

 

Sinthoma – escrito com TH: é um neologismo, uma nova forma de escrita que Lacan dá ao sintoma, para marcar que estamos mudando para um novo regime de relação entre o significante e o corpo.

Lacan define o sintoma como “um evento do corpo” em 1976 no texto “Joyce o sinthoma.” [3]. Essa é a única vez que essa expressão aparece, mas J.-A. Miller a extrai para fazer dela uma noção chave do último ensino de Lacan e para situá-la na série de novos conceitos introduzidos pela mudança de perspectiva que se dá a partir do Seminário XX, Mais Ainda, no qual o significante tem efeitos de gozo e não mais de mortificação: o parlêtre, lalangue, e o sinthome. O sinthoma é “algo que aconteceu ao corpo por causa de lalangue.” [4]

 

J.-A. Miller opõe o sintoma como formação do inconsciente, que é decifrável e revela o desejo inconsciente, para o sintoma acontecimento de corpo que pertence ao registro do gozo indecifrável, “gozo opaco que exclui o significado,” escreve Lacan.[5]

 

O gozo pressupõe o corpo; um corpo vivo, que não é a imagem especular, mas que é definido como “aquele que se goza” [ce qui se jouit]; não um gozo natural e primário, mas um gozo causado pelo impacto da linguagem.

 

O acontecimento de corpo é a “percussão” da linguagem no corpo,[6] é o trauma da linguagem.

 

Essa ênfase no gozo – e por conseguinte no corpo- está refletida na prática analítica, que se torna “uma disciplina do gozo,” [7] na qual a questão “o que isso significa?” é subordinada à outra: “o que isso satisfaz?” “Busque onde isso se satisfaz” [8]! Em análise, então, certamente se decifra o sintoma, mas visa-se, sobretudo, o real do sintoma, o que está para além do sentido, além dos rodeios do desejo. Ler um sintoma, diz J.-A. Miller, “é visar esse choque inicial”, “visar a redução do sintoma em sua fórmula inicial, isto é, o encontro material entre significante e corpo, o puro choque da linguagem no corpo”. É visar “a fixação do gozo e a opacidade do real.” [9]

 

O acontecimento de corpo está situado no nível da fixação freudiana, na qual o trauma fixa o impulso que será a fundação da repressão. A experiência analítica então leva a um “abaixo da repressão,” [10] a uma zona do Urverdrängung, que é uma repressão que nunca é anulada, um ponto opaco, um buraco, Lacan dirá [11]. O choque de lalangue e corpo é da ordem do real sem lei [12]. J.-A. Miller específica: “Este resto é o que está na origem mesma do sujeito. É de alguma forma o evento original, e, ao mesmo tempo, um evento permanente, um que não cessa de se reiterar.” [13] Encontramos a noção de permanência novamente. É originária, mas reitera, não na forma de um retorno do reprimido, mas de uma reiteração do mesmo “Um” do gozo. O sinthoma como um acontecimento de corpo é uma condição do falasser, constitutiva, é de certa forma o ponto umbilical do sujeito, opaco, fora do sentido, sem rastro, sem cura, “a coisa mais real que muitas pessoas têm,” diz Lacan.[14]

 

Adentra-se um terreno escorregadio quando se usa a palavra “na origem”. É uma questão de “encontrá-lo novamente”? Seria o choque primeiro do acontecimento de corpo identificável como tal? É algo dito? Ou é algo sentido – como o gozo feminino, impossível de dizer? O que é o Um do gozo: uma sensação, uma letra, uma palavra que marcou, um som?

 

A análise pode conduzir um sujeito a um ponto indizível de singularidade. Podemos ouvir em alguns testemunhos de passe que, o que é inicial, agora é “além”, “além do [outro]” [15]: o sinthoma está localizado além daquilo que dá suporte ao significado, à fantasia e às identificações maiores.

 

A clínica do passe

 

Os testemunhos de passe nos tocam e nos impressionam por sua diversidade. Não se trata, portanto, de uma questão de forçá-los, lê-los como uma aplicação em conformidade com uma teoria – mesmo que não possamos fingir que não há teoria no final da análise! O importante é não cair na armadilha.

 

Muitos que realizaram o passe são testemunhas de algo que acontece com seus corpos no final da análise. Frequentemente esses acontecimentos são associados a uma “vivificação”, a um “mais de vida [plus de vie]”. Os exemplos são singulares, surpreendentes; eles nos levam para a lalangue de cada sujeito.

 

Para Jérôme Lecaux, cujo primeiro testemunho de AE (Analista da Escola) ouvimos das “Questões da Escola” em Paris -janeiro de 2016-, é uma história de pilar e espinha dorsal. Aqui está um homem dedicado a incorporar em si mesmo o pedaço de pau colocado na boca de crocodilo de sua mãe. Ele fez de si o pilar, dela e de outros, ao preço de uma grande mortificação e constante exaustão (sempre “exausto”!). A desmontagem da fantasia permitiu uma separação da mãe e foi acompanhada de um “acontecimento de corpo”. Ele sempre percebeu um buraco em uma vértebra, onde situava-se uma falta de um pai, uma “fundação na vida”. De repente, não somente ele teve uma sensação de um aperto na pélvis, o que deu a seu corpo uma nova solidez, como também uma “abertura das comportas” tomou espaço, uma energia vital se espalhou por seu corpo, lhe dando a impressão de uma carne viva. O corpo, de peso morto, transformou-se em uma fonte de energia.

 

Esta vivificação é, façamos notar, o resultado de uma operação de desmontagem da fantasia. Não se trata de um aparecimento de um significante reprimido, mas uma sensação – um corpo, de fato, “você o sente em seus ossos,” escreve Lacan. [16]

 

Outro AE descreveu “sensações” e fenômenos do mesmo tipo do sinthoma-acontecimento de corpo, no sentido de uma percussão inicial da linguagem no corpo. Hélène Bonnaud por exemplo [17] relaciona a sensação do corpo caindo, do qual ela tem que se rasgar cada vez, com o impacto do significante “lançar” da frase paternal que subitamente aparece no final de sua análise: “se for uma menina, iremos lançá-la pela janela.”

 

Eu mesma relatei uma sensação corporal borbulhante, um “cheia de energia”, que foi interpretado como “você é uma corredora!” Essa sensação é minha mais antiga “memória”, mas não pode ser datada, não tem forma ou cenário. Pode tornar-se uma força motriz no final da análise, quando o desprendimento do Outro, o “tutor” tomou lugar. Como apontei, “corredora” não é o redescobrimento de uma palavra que teria me marcado, nem uma identificação de fixação, nem um nome único que diria algo sobre isso. [18]

 

O primeiro testemunho de Verónique Voruz [19] oferece diferentes abordagens para o corpo falante, cujo status varia e que merecem ser comentados um por um. Irei mencionar quatro deles.

 

Primeiro, a história familiar é reduzida a poucos significantes, catástrofe, monstro, maldição, “marcas primárias”, ela diz. Eu acrescentaria que são deixadas por “palavras que machucam” [20] – o que Lacan chamou de o “então chamado, marcas oraculares” [21] – por exemplo: “você tem o corpo de uma mulher fraca,” ou “você é a enviada do príncipe das trevas.” Esses são “significantes do destino”, ela disse, que podem ser desmanchados depois da construção da fantasia.

 

Isso também foi causa para um sintoma persistente, resistente à interpretação, que prosseguiu durante o curso da análise, quando ela se fazia visível e falava em público: seus olhos tornavam-se instantaneamente afetados, tornando-se vermelhos. Até o dia em que, desfigurada, ela adentra a sala do analista e começa: “Essa é a história dos meus olhos” [C’est mon histoire d’yeux], o analista “rugiu”: “Deus! Eu a ouço finalmente!” [Dieu! Enfin je l’entends] e corta a sessão. Esse “exorcismo pela equivocação” fez a identificação com o diabo cair e fez o sintoma “quase razoável.”

 

Ela também descreve a montagem que teve de inventar em ordem de se separar do analista – ela quem nunca conseguira se separar sem rasgar-se, vivendo como “extensão do corpo do outro”

 

No final, precisamente, ela faz a descoberta, extraída na forma de um sonho, de uma nomeação de seu modo de vida: “Eu estou sempre um pouco rasgada” [Je suis toujours un peu à l’arrache]. É uma palavra de destino que foi atenuada, e que ela pode agora usar novamente – sua mãe tinha rasgado sua perna num acidente em uma montanha e nesse último sonho Véronique escala uma montanha de forma “rasgada” [à l’arrachage] derrubando pedras; ela se vira e vê abaixo, junto às pedras, “uma perna rasgada” [une jambé arrachée].

 

Para concluir, esses diferentes exemplos me conduziram à três caminhos possíveis de investigação.

 

Essas histórias de “sensações corporais”, de vivificação, exigem que retomemos novamente as questões dos afetos. Lacan evocou os afetos no final da análise correlacionando-os com o atravessamento da fantasia a partir das posições “maníaco-depressiva” [22] e “depressiva” ou ainda do entusiasmo [24]. Agora é o corpo que é “sensível” [25]. Como podemos relacionar esses afetos do corpo com o “isso sente” da escrita de Lacan sobre Joyce, ou aos “efeitos dos afetos” da lalangue no Seminário XX: “Lalangue nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos” [26]?

 

Não sejamos obcecados pelo acontecimento de corpo “em sua origem”! Pelo contrário, sugiro que a análise produza acontecimentos – na medida em que “um dito faz um acontecimento” [27], é um dito que cria; uma nominação. Inventar “palavras que carregam algum peso,” [28] alojando-as na junção opaca da lalangue e corpo. A análise é criacionista, [29] como Éric Laurent pontuou. Eu proponho a hipótese de que a análise produz um real singular para cada um, mais do que o encontra nas recordações dos restos, o real que estava na origem. Testemunhos de passe frequentemente transmitem essas nomeações singulares (lançar, correr, quem-vive, rasgar etc.), pontos umbilicais opacos nas tramas das narrativas, que são como pistas para aquilo que escapa à narrativa. Elas não sãs as “últimas palavras”, nem palavras da origem, do choque inicial que nunca pode ser diretamente reconstruído. Elas podem somente circunscrever o impacto desse encontrando, traçando sua borda.

 

E a interpretação-acontecimento? Daquelas “palavras que carregam” e tem efeito de gozo, que “provocam uma reação instintiva” [31]? A análise pretende desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra,” [32], mas o faz novamente e “no corpo” [en corps].

 

*Texto originalmente publicado e disponível em

https://www.nlscongress2021.com/blogposts/title-h8sct-5m96m-5xecx-n67z2

 

 

Tradução livre por Rafaela Vieira de Oliveira

Referências do texto original

[1]   This text is the complete version of a paper presented at the ACF-Belgium Journée, 20 February 2016, “Corps et résonances” and was published in Quarto 112/113, pp. 116-118.

[2]   Miller, J.-A., et. al., “Conversation sur les embrouilles du corps”, Bordeaux, 1999, Ornicar ?, No. 50, 2002, p. 235, emphasis added. 

[3]   Lacan, J., “Joyce the Sinthome”, trans. A.R. Price, The Lacanian Review, No. 5, 2018, p. 17.

[4]   Miller, J.-A., “Spare Parts”, trans. A.R. Price, Psychoanalytical Notebooks, No. 27, pp. 87-117. 

[5]   Lacan, J., op. cit., (trans modified) p. 18.

[6]   “Shock”, “percussion”: terms used by J.-A. Miller, notably in his course “L’Être et l’Un”, 2011 (unpublished).  

[7]   Miller, J.-A., “The Warsaw Lecture”, trans. A.R. Price, Hurly Burly, No. 2, 2009, p. 177.

[8]   Miller, J.-A., “L’économie de la jouissance”, from the course “Choses de finesse en psychanalyse”, 2008-2009, La Cause freudienne, No. 77, p. 169.

[9]   Miller, J.-A., “Reading a Symptom”, intervention at the IXth Congress of the NLS, London, 3 April 2011, trans. A.R. Price, Hurly-Burly, No. 6, 2011, p. 152. 

[10]  Miller, J.-A., Course “L’Être et L’Un”, 30 March 2011, unpublished, and “Reading a Symptom”, op. cit.

[11]  Lacan, J., “Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines”, Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976, p. 59. 

[12]  Miller, J.-A., “A real for the 21st century”, Scilicet,  A real for the 21st Century, A New Lacanian School Publication Paris, 2014, p. 34 and trans. R. Litten in Hurly-Burly, No. 9, 2013.

[13]  Miller, J.-A., “Reading a Symptom”, op. cit., p. 152.

[14]  Lacan, J., “Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines”, op. cit., p. 41. 

[15]  This is the “zone” that J.-A. Miller has designated as the “outrepasse”; see in particular the course “L’Être et l’Un”, 4 April 2011.

[16]  Lacan, J., “Joyce the Symptom”, op. cit. p. 14.

[17]  Bonnaud, H., “Réel, résistance, restes”, Quarto, No. 109, Dec. 2014, pp. 68-69.

[18]  See in particular: Lysy, A., “Knowing How to do with One’s Symptom”, trans. B. Bertrand, Psychoanalytical Notebooks, No. 25, 2012, and “Ma petite chansonnette. Variations sur l’événement de corps” (2012), Quarto, No. 103, Dec. 2012.

[19]  Voruz, V., “Se séparer sans s’arracher”, Journée “Questions d’École”, Paris, 23 January 2016. 

[20]  The expression is of J.-A. Miller, in an intervention on interpretation: “Les mots qui blessent”, La Cause freudienne, 72, 2009, pp. 133-136.

[21]  Lacan, J., “Subversion of the Subject and Dialectic of Desire”, Écrits, London, Norton, 1966/2006, p. 684 : “The first words spoken decree, legislate, aphorize, and are an oracle; they give the real other its obscure authority.”

[22]  Lacan, J., “L’étourdit”, Autres écrits, op. cit., p. 487.

[23]  Lacan, J., “Proposition of 9 October 1967 on the Psychoanalyst of the School”, trans. R. Grigg, Analysis, No. 6, 1995.

[24]  Lacan, J., “Italian Note”, trans. R. Grigg, Analysis, No. 7, 1997.

[25]  Lacan, J., The Seminar Book XXIII. The Sinthome, trans. A.R. Price, Cambridge, Polity, 2016, p. 9.

[26]  Lacan, J., The Seminar Book XX. Encore, trans. B. Fink, London/New York, Norton, 1998, p. 139.

[27] Miller, J.-A., “The Unconscious and the Speaking Body”, trans. A.R. Price, Scilicet The Speaking Body, A New Lacanian School Publication, 2015, p. 39, & Hurly-Burly, No. 12, 2015, pp. 119-132

[28]  Lacan, J., “The Lacanian Phenomenon” (conférence in Nice, 30.11.1974), trans. D. Collins, The Lacanian Review, No. 92020, p. 25. 

[29]  Laurent, É., transcribed interview, “Ça parle du corps avec … Éric Laurent”,  e-mail sent before CPCT Paris Day, September 2015. 

[30]  Lysy, A., “Un trognon de réel en fin d’analyse”, Le réel mis à jour, au XXIe siècle, AMP, Ecole de la Cause freudienne, collection rue Huysmans, Paris, 2014, pp. 80-82.

[31]  Miller, J.-A., “The Unconscious and the Speaking Body”, op. cit., p. 42.

[32]  Lacan, J., “Une pratique de bavardage”, Le moment de conclure, 15 November 1977, Ornicar ? 19, 1979, p. 6.